quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Ditadura da Bicicleta

Embora o post de hoje não seja algo relacionado à temática deste blog, não resisti, na função de educador, de abordar o tema.

Já desisti do brasileiro faz tempo. Tanto que aqui qualquer ato de civilidade é a exceção, não a regra, como podemos constatar o efeito midiático quando se pratica uma ação generosa, honrada ou honesta. Fato é que ainda somos como silvícolas em uma terra de riqueza e aparente modernidade. Do brasileiro eu espero tudo de ruim, principalmente na convivência diária e particularmente em suas atitudes no trânsito. Adoro dirigir por estradas vazias (o que é raro nestes tempos), pois se avizinhamos um outro condutor, dele só espero uma "fechada", o desrespeito à sinalização e às regras de conduta no trânsito, a postura excessivamente agressiva e até a falta de gentileza em compreender as dificuldades dos outros, pois não temos o verdadeiro senso da coletividade, o que vale aqui é a Lei de Gérson, aquela de tirar vantagem em tudo, certo? Observo inclusive que atualmente não há, na prática, lei de trânsito para motociclistas, pois os mesmos podem fazer o que quiserem, desde andar em cima da guia, fazer a conversão em canteiros e até circular na contramão.


Por isso, durante algum tempo fui simpático ao movimento em torno da expansão da bicicleta como um meio de transporte sadio e sustentável, jamais compreendendo a inoperância de nossos governantes em promover esta opção como uma alternativa para os problemas da mobilidade urbana, através da implantação ou aumento da quantidade de ciclovias, para citar uma só medida. De uma certa forma, tal simpatia resgata um pouco a relação deste meio com minhas origens familiares, uma vez que meu avô foi, senão o primeiro, um dos pioneiros a ter uma bicicleta entre os moradores do bairro Estreito. Inclusive, lá pelos anos 50, ele já descia o morro da Lagoa com esta bicicleta, que não possuía sistema de frenagem, obrigando-o a amarrar ao quadro da bicicleta galhos de árvores que promoviam o necessário atrito com a estrada (na época de chão batido), limitando a velocidade de descida. Contudo, alguns testemunhos me fizeram a repensar minha simpatia e adesão a este movimento.

Nos finais de tarde de verão, costumo caminhar pela beira mar continental do bairro Estreito, em Florianópolis, onde há uma ciclovia. Muita gente frequenta este espaço nesta época do ano, o que dificulta a própria movimentação pelo calçamento. Tanto que muitos frequentadores preferem ocupar, alternativamente, a ciclovia, principalmente praticantes de skate, patinete e outros meios. Outra classe que habitua usar a ciclovia são os corredores, pois é complicado sustentar o ritmo, tendo de desviar a todo momento dos transeuntes na calçada. Ou seja, a ciclovia, embora destinada primariamente para o trânsito das bicicletas, é um espaço público compartilhado, onde as regras da boa convivência e do respeito devem prevalecer, a exemplo do que deveria ocorrer com as pistas empregadas pelos veículos automotores, como muito tem sido reivindicados pelo movimento dos ciclistas.

Todavia, para minha surpresa e indignação, testemunhei várias vezes os ditos "ciclistas" ameaçarem ou constrangerem outras pessoas que se utilizam da ciclovia para se locomover, principalmente os corredores que ocupam este espaço, como se fossem por direito usuários exclusivos da pista. Muitas vezes tais atitudes desrespeitosas ocorrem em "hordas de ciclistas", estes bandos que mais estão para os "Hell Angels" do que para gente civilizada, pois, ao invés de reduzir a velocidade e ultrapassar os outros usuários, num gesto de boa convivência e respeito, lançam as suas mais desaforadas agressões verbais, de forma coletiva, talvez por se sentirem muito prejudicados pela separaração de sua gangue, mesmo que por uma ínfima fração de tempo. Mas o ápice de tal comportamento repulsivo aconteceu comigo mesmo, hoje.

Já a algum tempo, adotei a corrida como um meio de manter uma atividade física regular. E o faço às 6 horas da manhã, todos os dias, na mesma beira mar do Estreito, por conta de ser o único espaço possível na minha agenda para a realização de tal atividade. Também é o horário onde há um número bem reduzido de pessoas, o que facilita a locomoção sem maiores problemas, diferentemente de períodos mais frequentados, como os já mencionados finais de tarde. Além disso, as pessoas que habituam frequentar o horário por mim adotado são normalmente as mesmas, predominantemente mais velhas, imperando o respeito e uma certa cumplicidade. Cumprimentos como "bom dia" são comuns entre os frequentadores, inclusive entre pedestres e ciclistas. E embora haja bastante liberdade para correr na calçada, ainda assim prefiro correr pela ciclofaixa, pois esta é asfaltada, o que confere maior conforto e rendimento para a atividade. Quem corre sabe que nosso calçamento é inadequado, pois dá maior impacto e possui uma rugosidade inapropriada. Adicionalmente, no horário adotado, a ciclovia é raramente ocupada, permitindo utilizá-la sem conflitos. Ainda assim, procuro correr muito próximo ao canteiro, o que permite a passagem de até dois eventuais ciclistas paralelamente, sem comprometimento da segurança.

Qual a minha surpresa, durante certo trecho da minha corrida matinal, próximo à ponte Hercílio Luz, ao sofrer uma reprimenda de um certo cidadão ciclista, dizendo para "eu correr na calçada, respeitando a ciclovia", num tom típico de um discurso acéfalo ensaiado de quem quer se passar como "moderno". Provavelmente deve ter passado horas ensaiando tal pensamento, copiado de algum site de movimento ciclista. O mais inusitado, no entanto, é que o dito cidadão vomitou sua frase progressista não exatamente da referida ciclofaixa, pois estava se deslocando em sua bicicleta na pista destinada aos automóveis! Ia justamente retrucar o "ciclista do mês", orientando-o a "pedalar na ciclovia, respeitando os automóveis". Porém, cruzamos em sentido contrário, sendo que o mesmo se afastou a tempo de não ser possível receber minha réplica.

Minha reflexão acerca deste e de outros episódios similares me levaram então a reconsiderar estes movimentos do tipo "vá de bike". Já vi entrevistas de representantes destes grupos, o que sempre me passaram a impressão que estes movimentos são cerceados por um certo fundamentalismo. E a dura realidade testemunhada e sofrida na própria carne só reforça este ponto de vista, onde a bicicleta está acima de tudo, inclusive do respeito ao próximo. Para piorar, há a cultura média do brasileiro. Talvez ainda não estejamos preparados como povo para a adoção maciça dos avanços obtidos por outras sociedades civilizadas, por conta da negligência de inúmeras gerações de governantes no que diz respeito à priorização da educação em suas agendas, somada a perda crescente dos valores familiares e uma certa promoção cultural equivocada, tanto pela mídia quanto pelo ente público, que deveriam se preocupar em transmitir bons fundamentos a um povo muito vidrado nas novelas e nos BBBs e pouco nos livros. Então, talvez seja inoportuno gastar dinheiro público com ciclovias, até que a população esteja devidamente educada para aproveitar de tais benesses em sua plenitude.

Afinal, o problema não é das bicicletas. O problema do Brasil é o brasileiro.

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